Dezenas de indígenas do povo Kayapó ocuparam, na manhã da última sexta-feira (26), a sede do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Kayapó do Pará, em Redenção, no sul do estado, em protesto contra a nomeação do advogado Casimiro Júnior Marinho Aguiar como novo coordenador do órgão. A nomeação foi publicada no Diário Oficial da União na quinta-feira (25) e gerou forte reação entre lideranças tradicionais, que denunciam a falta de consulta prévia às comunidades e rejeitam a presença da família Marinho na gestão da saúde indígena.
Casimiro é irmão de Lázaro Marinho, que comandou o mesmo DSEI entre 2017 e 2020 e foi exonerado após protestos por denúncias de má gestão. Ambos são parentes do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e conhecido por suas posições contrárias aos direitos indígenas. Em 2022, Zequinha foi derrotado na disputa pelo governo do Pará, mas manteve influência política sobre órgãos federais na região.
“Nosso protocolo não foi respeitado”
Segundo os manifestantes, a escolha do novo coordenador ignorou o protocolo de consulta aos povos indígenas, previsto na Convenção 169 da OIT, tratado internacional do qual o Brasil é signatário.
“A nossa indignação é que não foi respeitado o protocolo de consulta. Os caciques não aceitam a família Marinho na gestão indígena”, afirmou Baju Kayapó, presidente do Instituto Nhak, que representa 35 caciques da região.
Os DSEIs são órgãos vinculados ao Ministério da Saúde e responsáveis pela execução das políticas de saúde nas aldeias, como vacinação, atendimento básico, transporte de pacientes e assistência especializada. Para os Kayapó, a gestão do órgão tem impacto direto na sobrevivência das comunidades.
“A gente consegue viver sem educação, porque temos nossa cultura e conseguimos avançar. Mas sem saúde, não. Tem casos que não dá para medicar só com ervas”, completou Baju.
“Colocaram um invasor para guardar a maloca”
A revolta também foi manifestada por Kokokay Kayapó, filho do cacique Kubey Kayapó, que classificou a nomeação como uma “afronta à vida e à autonomia” dos povos originários.
“O senador Zequinha Marinho, conhecido pela oposição aos nossos direitos, indica quem vai coordenar o DSEI Kayapó do Pará. Isso é uma afronta à nossa vida e à nossa autonomia”, declarou em vídeo publicado nas redes sociais.
“É como colocar um invasor para guardar a maloca. A família desse senador deixou marcas de má gestão no DSEI. Nós indígenas temos memória e lembramos do descaso e da precariedade.”
Kokokay também criticou o uso político da saúde indígena:
“Nossa saúde não tem preço e não será negociada. Quem comanda o DSEI precisa ter compromisso genuíno conosco, e não com um político em Brasília. Exigimos que o governo respeite nosso protocolo de consulta e cumpra a promessa de priorizar a vida, e não as negociatas.”
Defesa de Casimiro e reação de Zequinha
Em entrevista à Repórter Brasil, Casimiro Marinho rebateu as críticas e disse que sua indicação foi resultado de um processo “amplo” e apoiado por abaixo-assinados de comunidades da região.
“Minha nomeação não derivou apenas do governo federal. Teve toda uma construção”, afirmou.
Ele também destacou sua trajetória como advogado e militante político:
“Sou advogado do PT em Redenção, de esquerda e filiado ao partido. Tenho experiência na defesa de direitos e em ações sociais. Parentesco não define competência — cada um constrói sua história.”
No dia da nomeação, o senador Zequinha Marinho publicou um vídeo ao lado do secretário de Assuntos Parlamentares do governo federal, André Ceciliano, e de 26 caciques Kayapó, que estiveram em Brasília para defender o desmembramento do DSEI e a criação de uma nova unidade em São Félix do Xingu. Casimiro alegou que parte dos caciques procurou o senador por conta própria.
“O indígena não tem malícia de saber se é um político de situação ou oposição. Foram sozinhos reivindicar a divisão do DSEI e Zequinha ajudou a marcar a reunião”, disse.
Histórico de conflitos e influência política
Apesar de aparecer em reuniões com lideranças indígenas, Zequinha Marinho possui histórico de atuação contrário aos direitos dos povos originários. Ele já defendeu a exploração econômica de terras indígenas e atuou para retirar restrições de uso em áreas como a Terra Indígena Ituna-Itatá, abrindo espaço para grileiros e madeireiros. Também chamou a COP30, que será realizada em Belém em 2025, de “ecoterrorismo ambiental”.
A influência do senador também foi citada em investigações da Polícia Federal. Em 2020, um dos principais chefes do garimpo ilegal na Terra Indígena Kayapó, Pedro Lima dos Santos, acusado de extrair e “esquentar” mais de 3 toneladas de ouro ilegal, afirmou ter sido recebido por Zequinha em Brasília e descreveu o parlamentar como “solidário” à causa dos garimpeiros.
Em resposta às críticas, Zequinha enviou nota afirmando que trabalha para “ampliar a cidadania e assegurar mais direitos aos povos indígenas”. O senador citou a PEC 10/2024, que permite aos indígenas explorar e comercializar sua produção, e o PL 2973/2023, que autoriza a mineração em áreas já exploradas.
Disputa por território e garimpo ilegal
A nomeação contestada ocorre em meio a um contexto de décadas de pressão sobre a Terra Indígena Kayapó, considerada uma das mais invadidas por garimpeiros na Amazônia. Entre 2018 e 2022, a área perdeu 13,7 mil hectares de floresta para a mineração ilegal. O avanço da atividade provocou contaminação por mercúrio nos rios e aumentou o risco de doenças neurológicas entre os indígenas.
Policiais civis e militares chegaram a formar milícias armadas para controlar áreas de garimpo dentro do território. Parte do ouro extraído ilegalmente foi parar nas cadeias produtivas de gigantes da tecnologia como Apple, Google, Microsoft e Amazon.
Neste ano, o governo federal concluiu a primeira etapa da desintrusão da TI Kayapó, destruindo 1.384 estruturas ilegais e gerando um prejuízo estimado de R$ 97,3 milhões aos criminosos. A ação reduziu o desmatamento em 95%, mas, segundo a coordenadora regional da Funai, O-é Kaiapó Paiakan, facções criminosas ainda atuam na área.